O Habite-se é condição para incidência do IPTU?
- Leonardo Gonçalves
- 30 de ago.
- 8 min de leitura

1. Introdução
A controvérsia acerca da necessidade do Habite-se como condição para a incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) é recorrente na prática tributária, especialmente em empreendimentos imobiliários. De um lado, sustenta-se que o tributo incide desde a conclusão da obra ou da declaração de conclusão; de outro, argumenta-se que a ausência de habitabilidade impediria a cobrança, devendo prevalecer a tributação como imóvel territorial até a expedição do documento ou a instituição do condomínio edilício.
2. Natureza jurídica do IPTU e o papel do Habite-se
Nos termos do artigo 32 do Código Tributário Nacional (CTN), o fato gerador do IPTU é a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado em zona urbana. Trata-se de hipótese de incidência que decorre da realidade fática da existência do imóvel urbano, e não de ato administrativo da municipalidade.
O Habite-se, por sua vez, é ato administrativo de polícia que atesta a conformidade da construção com o projeto aprovado e com as normas técnicas. Seu campo é urbanístico e de segurança, não constituindo requisito do fato gerador tributário.
Não obstante, parcela da jurisprudência defende que, sobretudo em incorporações imobiliárias, o IPTU só pode ser exigido quando o imóvel atinge condição de habitabilidade.
Enquanto a obra não se encontra apta ao uso - situação normalmente comprovada pela expedição do Habite-se - a incidência deveria limitar-se ao imposto territorial. A cobrança predial pressuporia, assim, a efetiva utilidade econômica do imóvel, não bastando sua simples edificação formal.
Esse raciocínio se harmoniza com a orientação firmada no STJ, no julgamento do REsp nº 1.937.821/SP (Tema Repetitivo), que, embora tenha versado sobre ITBI, estabeleceu premissas relevantes: a apuração da base de cálculo do 'valor venal' deve refletir a realidade econômica do imóvel, não se admitindo a utilização de parâmetros meramente estimativos ou artificiais.
Ademais, cumpre lembrar que o direito tributário não admite analogia nem interpretações ampliativas em prejuízo do contribuinte. O princípio da estrita legalidade (art. 150, I, CF) exige que a interpretação das normas de incidência seja restritiva. Assim, segundo o artigo 2º, inciso 1º, alínea c, da Lei Municipal nº 6.989/1966 (São Paulo), o IPTU somente poderia ser exigido após a instituição do condomínio edilício e a consequente individualização das unidades.
3. A instituição do condomínio edilício e seus efeitos tributários
A instituição do condomínio edilício encontra disciplina no art. 1.332 do Código Civil e no art. 7º da Lei nº 4.591/1964. Para sua constituição, exige-se: a averbação da edificação concluída no Cartório de Registro de Imóveis; a especificação e discriminação das unidades autônomas; a instituição formal do condomínio por meio de instrumento público ou particular, devidamente registrado.
Somente a partir dessa formalização surgem juridicamente as unidades autônomas, com matrícula própria e fração ideal vinculada. Antes disso, existe apenas a matrícula-mãe do terreno, ainda que as construções estejam fisicamente concluídas.
A alínea c do art. 2º, inciso 1º, da Lei nº 6.989/66 parece ter buscado harmonizar a tributação com esse marco jurídico, prevendo que o IPTU incidirá após a instituição do condomínio edilício. Tal previsão evita a sobreposição de lançamentos (imposto territorial sobre a matrícula-mãe e imposto predial sobre unidades ainda não formalizadas) e garante que a tributação acompanhe a efetiva constituição das unidades no registro imobiliário.
Ao permitir a exigência antecipada, sem a instituição formal, a Fazenda amplia indevidamente a materialidade do tributo, em aparente afronta à legalidade estrita e ao princípio da segurança jurídica.
4. O conflito legislativo entre as alíneas a e c da Lei 6.989/66
A redação do art. 2º, inciso 1º, da Lei Municipal nº 6.989/1966, com as alterações promovidas pela Lei nº 15.406/2011, criou uma situação de tensão normativa. De acordo com a alínea a, o IPTU incide no mês subsequente à 'construção ou modificação de edificação que implique alteração do valor venal do imóvel'. Já a alínea “c” estabelece como fato gerador o mês subsequente à 'instituição de condomínio edilício em planos horizontais ou verticais'.
À primeira vista, cada hipótese teria campo de aplicação distinto: a alínea a para construções isoladas ou reformas relevantes; a alínea c para incorporações imobiliárias, em que a constituição formal do condomínio marca o nascimento jurídico das unidades autônomas.
Na prática, entretanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem privilegiado a aplicação da alínea a inclusive nos casos de incorporações. Parte-se da premissa de que a conclusão física da obra, atestada pela DTCO ou por declaração do contribuinte, já seria suficiente para legitimar a cobrança do IPTU predial individualizado.
Essa interpretação, contudo, esvazia a função normativa da alínea c, que teria sido introduzida justamente para harmonizar a tributação com o momento registral de instituição do condomínio edilício.
Do ponto de vista da legalidade estrita, não se pode admitir que a alínea a seja estendida para abranger hipóteses próprias da alínea c, pois isso representa interpretação ampliativa em prejuízo do contribuinte, prática vedada pelo direito tributário.
Tal sobreposição gera consequências práticas graves: possibilidade de bitributação, comprometimento da segurança jurídica de adquirentes e incorporadoras, afronta à lógica do Código Civil e da Lei nº 4.591/1964. Portanto, a interpretação sistemática e coerente do art. 2º, inciso 1º, exige a distinção entre as duas hipóteses: a alínea a aplicável a imóveis isolados, e a alínea c aplicável aos empreendimentos condominiais.
5. Jurisprudência predominante no TJSP
5.1 Caso High Park Empreendimentos:
“O fato gerador do IPTU não guarda relação com a expedição de certificado de conclusão de obra pela Municipalidade. Tal documento traduz ato administrativo de poder de polícia, estranho à hipótese de incidência tributária, que se consuma com a conclusão da edificação em si.”
5.2 Caso Grenoble Investimentos:
“As edificações presumem-se concluídas na data informada na DTCO, de modo que, a partir desse marco, o IPTU pode ser exigido, sendo prescindível a expedição do Habite-se. A formalização do pedido do certificado de conclusão deve ser entendida como momento em que a construção já possui condições de servir de habitação, ainda que em caráter potencial.”
5.3 Caso Odebrecht Realizações
“A legislação municipal prevê hipóteses de ocorrência do fato gerador do IPTU ao longo do exercício fiscal, inclusive quando da conclusão da obra ou de modificação do imóvel que altere seu valor venal. Assim, o lançamento suplementar realizado pelo Fisco é legítimo, não havendo que se aguardar a expedição do Habite-se para a exigência do tributo.”
5.4 Precedente TJSP (2013/2014)
“O fato gerador ocorreu na data da conclusão da obra informada pelo contribuinte e de acordo com a realidade do imóvel, nos termos da legislação municipal. A expedição do habite-se não guarda relação com o fato gerador do tributo.”
5.5 Caso TGSP Empreendimentos Imobiliários (Campinas)
“A construção pode ser tida por concluída na data em que o término da obra é declarado pelo contribuinte. Irrelevância, a princípio, da data de expedição do ‘habite-se’, ato administrativo de escopo diverso.”
“A especificação das frações ideais na incorporação é necessária para que o lançamento seja operacionalizado, mas não define a data em que ocorrido o fato gerador do IPTU – o qual, quanto ao imposto predial, deve ser considerado como a data de conclusão da obra.”
6. Posição do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça também já enfrentou a questão da relação entre o Habite-se e o fato gerador do IPTU. No AgInt no AREsp nº 1.474.019/SP, a Segunda Turma analisou lançamento de IPTU realizado com base na Declaração Tributária de Conclusão de Obra (DTCO), antes da expedição do Habite-se.
O acórdão recorrido - mantido pelo STJ - afirmou expressamente: 'As regras para a concessão do habite-se não se confundem com as tributárias quanto ao lançamento do tributo. Assim, a cobrança, tal como lançada, encontra respaldo legal, sendo autorizado o lançamento complementar do IPTU a partir da informação na Declaração Tributária de conclusão da obra nos termos do art. 2º da Lei nº 6.989/66, com redação dada pelo art. 7º da Lei Municipal nº 15.406/2011.
Tampouco ficou demonstrada a bitributação alegada.' Esse precedente reforça duas conclusões importantes: 1. A cobrança de IPTU pode ser legitimamente realizada a partir da declaração de conclusão de obra, sem necessidade de aguardar o Habite-se; 2. O STJ reconhece que há espaço para os municípios definirem, em sua legislação local, os marcos de ocorrência do fato gerador, desde que respeitados os princípios da legalidade e da anualidade tributária.
Sem demérito da decisão emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, há aparentemente um equívoco na interpretação da lei 6.989/66, visto que “a” alínea a está para construções isoladas ou reformas relevantes; a alínea “c” para incorporações imobiliárias, em que a constituição formal do condomínio marca o nascimento jurídico das unidades autônomas, conforme exposto no capítulo 4, acima.
O posicionamento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, aparentemente, parece estar em uma direção mais correta sobre o assunto ao analisar a questão conforme consta abaixo.
7. Divergência jurisprudencial no TJSC
O TJSC, na Apelação nº 5003804-35.2020.8.24.0004 (Edifício Infinity), reconheceu que sem o Habite-se não é possível individualizar as unidades autônomas. Até então, o imóvel deve ser considerado em construção, sujeito apenas ao imposto territorial.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) consolidou entendimento oposto ao do TJSP e STJ em casos de imóveis ainda sem Habite-se, vetando a cobrança de IPTU em edificações não aptas à habitação. Dois precedentes são especialmente relevantes:
7.1 Caso de Blumenau (5ª Câmara de Direito Público – TJSC Apelação nº 0000164-57.2011.8.24.0004)
Em recurso interposto pelo Município de Blumenau, a autora se eximiu do pagamento de IPTU sob alegação de que o Habite-se foi negado em razão da falta de conformidade com normas de segurança contra incêndio. A Prefeitura sustentava que o imposto incide com a conclusão da obra, independentemente da conclusão formal.
A relatora, desembargadora Denise de Souza Luiz Francoski, rechaçou a tese do fisco, destacando:
“Não está apto à habitação [...] não há construção que possa servir à habitação, uso ou recreio [...] não é possível a incidência do IPTU.”
Esse trecho reforça a exigência de aptidão real para uso — e não apenas existência física da construção — como condição indispensável para a tributação.
7.2 Caso Araranguá (2ª Câmara de Direito Público – TJSC Apelação nº 0000164-57.2011.8.24.0004)
Em acórdão anterior, o Tribunal foi unânime ao afastar a exigência de IPTU predial antes do Habite-se, nesse caso envolvendo um empreendimento em Araranguá. Por falta do documento, concluiu-se que o imóvel ainda não havia alcançado condições de habitabilidade necessárias para ser tributado como edificação.
8. Conclusão
O estudo evidencia um quadro de tensão entre normas municipais e interpretações jurisprudenciais. De um lado, o TJSP e o STJ consolidaram entendimento de que o IPTU incide a partir da conclusão física da obra ou da DTCO, sendo irrelevante a expedição do Habite-se. De outro, o TJSC afirma que, sem o Habite-se, não há fato gerador para o IPTU predial, privilegiando a efetiva habitabilidade do imóvel como marco para a tributação.
Essa divergência gera insegurança jurídica para contribuintes e incorporadoras, sujeitas a interpretações distintas conforme a jurisdição, e expõe um cenário de instabilidade normativa que impacta diretamente o setor imobiliário.
O autor, com a devida vênia ao posicionamento do STJ, entende que as manifestações do TJSC melhor se coadunam com o espírito da Lei nº 6.989/66, sobretudo porque há aparente erro de interpretação da redação do art. 2º, inciso 1º. A alínea a deve ser compreendida como dirigida a construções isoladas ou reformas relevantes, enquanto a alínea c refere-se especificamente às incorporações imobiliárias, nas quais a constituição formal do condomínio edilício marca o nascimento jurídico das unidades autônomas.
Diante desse conflito, deve prevalecer a interpretação mais favorável ao contribuinte, em respeito ao princípio da legalidade estrita e da vedação de analogia em prejuízo do sujeito passivo. A harmonização dessa matéria, seja pela jurisprudência dos tribunais superiores ou por revisão legislativa, mostra-se indispensável para assegurar maior previsibilidade e segurança jurídica na tributação imobiliária.
Bibliografia
TJSP, Apelação Cível nº 1047406-74.2019.8.26.0053, 15ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Raul de Felice, j. 31.08.2020.
TJSP, Apelação Cível nº 1041310-14.2017.8.26.0053, 15ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Eutálio Porto, j. 09.05.2019.
TJSP, Mandado de Segurança nº 1028449-59.2018.8.26.0053, 12ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, Juíza Paula Micheletto Cometti, j. 30.01.2019.
TJSP, Apelação nº 1052036-19.2021.8.26.0114, 18ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Ricardo Chimenti, j. 2024.
TJSC, Apelação nº 5003804-35.2020.8.24.0004, Rel. Des. Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto, j. 2021.
STJ, REsp nº 1.937.821/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Seção, j. 24.02.2022 (Tema Repetitivo
Comentários